pequeno guia do património esquecido e ostracizado #5 igreja de são vicente

A Igreja de São Vicente foi o primeiro templo católico de Peniche. Devido à longínqua época em que existiu, chegou-nos pouca informação sobre esta construção, arrasada pelo terramoto de 1755 e completamente desaparecida depois da urbanização do terreno onde se situa a imagem do Bispo de Mariana, nos anos 70. Nesta gravura do século XVIII podemos vê-la do lado direito da Igreja da Ajuda:


E nesta foto com cerca de um século as suas ruínas (exatamente no centro da foto):


Apesar de haver pouca informação e ser raramente mencionado, este edifício assume uma enorme importância, não só pelo seu passado histórico, como também pela mística que lhe era associada pela população. Com os meios possíveis (à disposição de um gajo que não é historiador, mas por isso mesmo com mais liberdade para sugerir disparates), vou fazer um apanhado e uma análise crítica das lendas relacionadas com a Igreja de São Vicente. Comecemos por este relato do século XVIII incluído nas Memórias Paroquiais de Mariano Calado:

(...) tradições se conservam de pessoas antigas, que se fazem mais credíveis por se confirmarem com o que diz o cronista Frei Bernardo de Brito na sua Monarquia Lusitana, quando fala na entrada que Júlio César fez com o seu exército a Portugal e chegou a esta península (à qual se haviam acolhido os hermínios, em cujo alcance ele vinha), o que se tem por muito provável. 

Segundo esta históriadocumentada pelo relato feito pelos romanos, Júlio César chegou a uma ilha (presumivelmente Peniche) em perseguição dos lusitanos que tinham fugido da sua maior base, nos Montes Hermínios (presumivelmente a Serra da Estrela). A ser Peniche o local onde ocorreu a batalha pode ter sido o último reduto dos lusitanos antes da sua total subjugação.

E ainda se pode crer que se dilatou algum tempo nela depois de alcançarem os portugueses aquela vitória e que ele seria o que (em honra de algum dos seus deuses e em agradecimento de sair dela vitorioso) edificasse uma casa que na dita vila se acha situada à parte do norte entre ela e o lugar de Peniche de Cima, junto à Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, o que, digo, ao depois se colocou nela a imagem de S. Vicente, cujo nome ainda conserva a dita ermida suposto que o santo foi tirado dela há pouco tempo e se lhe dedicou altar na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, o que se fez por mais culto e decência da dita imagem.
Muito verosímil se faz ser o dito César, ou outro idólatra o que edificou a referida casa, por não ser feita à semelhança das nossas, nem das nossas igrejas, mas em forma de mesquita, assim o âmbito da casa como o da porta, tudo com muita fortaleza, pois tendo só de comprido trinta e três palmos e de largo vinte e nove, tem de grosso de parede nove palmos, e é de abóbada, e tem no meio da casa em igual proporção um arco de pedraria lavrada que não sai da parede mais  que a grossura da pedra lavrada e a parede do frontíspicio feita em forma de escarpa e o pórtico e âmbito da porta em volta redonda de pedraria lavrada e bruta juntamente suposto que quando se tirou o santo da dita casa se demoliu a porta, que se fez de proporação ordinária. 
E no convento de religiosos desta vila se acha um que foi missionário apostólico que andou em missão em África alguns anos, que diz serem todas as mesquitas dos mouros feitas por aquela mesma forma, ou sejam maiores, ou mais pequenas.

E se conserva na dita vila uma tradição trazida dos antigos que ali chegaram os godos e que a casa em que falamos foi templo de Vénus e que no subterrâneo, ou no seu circuito, está um tanque de água pura o qual se desce por escadas de pedraria, cuja boca está tapada com um letreiro.
Esta última tradição se supõe menos duvidosa, por se achar na dita vila um homem velho que diz que já a dita porta que vai para o referido tanque se abriu e ele desceu as escadas, porém não sabe o sítio dela por dizer que era muito pequeno e não se lembra e há muitas outras que afirmam que se abriu e se achou o dito lago, o que afirmam por lho dizerem pessoas mais antigas que o viram.
Presentemente mandei abrir (que estava fechada da dita casa olha para a parte do poente) uma porta por onde se dizia principiar a entrada do dito tanque e mandei cavar dentro e fora bastante altura e não se achou o que pretendia, mais que uns alicerces de pedra e cal, muito juntos uns dos outros, sem proporção de que fossem fundamento para nenhum género de edifício, e não continuei nesta diligência por não ter ordem de fazer grande despesa. 

Há uns anos foi encontrado algo parecido com o referido no texto: uma possível fonte subterrada que serviria a população e/ou o porto antes da construção das muralhas:


No entanto esta fonte está hoje (debaixo do pavimento) neste local:


Será que os populares associaram erroneamente a antiga fonte à igreja, por falta de noção geográfica? Ou haveria mesmo uma outra fonte subterrânea perto da Igreja de São Vicente?

Desta mesma porta que mandei abrir se tiraram no ano de 1676 duas pedras que se puseram no chafariz (que então se fez) dos cavalos e se fez por ordem do Marquês de Fronteira e pelo dinheiro da fortificação desta praça, que tinham dois letreiros de letra antiga em idioma estrangeiro, mas como se não vêem, nem se sabe o sítio em que estejam, não fiz diligência para o descobrir porque, para o fazer, era preciso demolir o dito chafariz ou parte dele, para o que não tenho jurisdição por ser a dita obra feita por conta da fortificação. Porém, não há dúvida que as ditas pedras estão no dito chafariz, porquanto se acham ainda algumas pessoas que as viram, e em um livro da Monarquia Lusitana de um curioso desta vila, à margem do capítulo acima alegado, está uma cota de letra manuscrita antiga, que diz o seguinte:
“Em São Vicente junto de Nossa Senhora da Ajuda se acharam duas pedras, que estão agora na fonte dos cavalos e serviram uma de ombreira outra de rebato, e para o tal ministério foram rebaixadas e se não pode ler mais que menos de metade em cada uma por ser de alto a baixo, porém bem se entende o nome de Júlio César e por isso se pode coligir ser esta a que o autor diz Peniche”.
Estas são as formais palavras da referida cota pelas quais se comprova que houve as ditas pedras e que estão sem dúvida na dita obra e, pelo nome escrito nelas de Júlio César, se pode ter por muito provável que não só chegou aqui, mas ainda que se dilatou algum tempo, pois se pode conjeturar que ele seria o que mandou abrir as ditas letras e edificaria aquela casa por templo a alguns seus deuses, pois se conforma tanto com as antigas tradições.

Primeiro que tudo, as pedras, a existirem, mesmo que tiradas da Igreja de São Vicente podem lá ter sido colocadas depois de retiradas do local original. Por outro lado, sabemos que aquela zona teve forte ocupação romana, pelo que haver lá perto uma construção (o tal subterrâneo) que incorporasse ou de onde tivessem sido retiradas as ditas pedras é possível.
As pedras têm bastante importância porque são a única ligação, tirando os estudos posteriores, que prova ter ocorrido aqui a batalha contra os resistentes lusitanos. A procura pela sua existência não é recente, como podemos ver por este relato do capitão do porto de Peniche, Pedro Cervantes de Carvalho Figueira, escrito em 3 de setembro de 1861:

A tradição entre os habitantes de Peniche dizia que os romanos para ali tinham levado uma pedra atestando este feito glorioso, mas ninguém sabia onde esta pedra existia; o meu professor de latim tinha-me falado dela muitas vezes; estes boatos excitaram em mim o desejo de a tornar a encontrar e, durante muitos anos, li todas as inscrições antigas e, pelas minhas pesquisas, conhecem-se algumas riquezas arqueológicas que existem, sobretudo, em Atouguia, a 3 quilómetros de Peniche, às quais se não dá importância alguma neste país e o que eu fiz para as inscrições fi-lo para os antigos documentos, podendo dizer, sem receio de ser desmentido, que tudo a que se tem publicado sobre Peniche, desde há vinte anos, foi baseado em informações por mim dadas aos amigos que delas se aproveitaram para as suas publicações; que se me perdoe esta tirada de amor próprio, mas é uma verdade que posso provar. 
Passando um dia de Julho de 1858 junto de um jardim situado no Morraçal da Ajuda, em Peniche, vi aí, numa pedra que fazia parte de um muro, uma linha de caracteres à flor da terra que dizia POMPEIA... Espicaçado pela minha curiosidade, apressei-me a ir ter com o proprietário do jardim, o qual prontamente me permitiu fazer extrair a pedra, com a condição de lhe tomar a por o muro no seu primitivo estado; encarreguei um pedreiro da extração, mas não foi bem sucedido, que a pedra estava deitada de lado e fortemente enterrada e cimentada no alicerce do muro. Passou-se ainda um ano depois desta primeira tentativa e uma segunda, feita com mais cuidado, pôs a pedra a descoberto. Tive a intenção de a erguer num local publico de Peniche e, por ocasião de ali se construir, no ano passado, um pequeno largo, mostrei o meu desejo de lá a colocar. Fi-la mesmo transportar para esse local, mas não se lhe deu importância alguma: deixaram-na abandonada entre as pedras e fui mesmo informado de que, sem meu conhecimento, tencionavam utllizá-la como uma boa laje no recinto que se ia construir no porto de desembarque, ao que me opus reclamando-a como minha propriedade e conservando-a à minha livre disposição. 
O assunto estava neste pé quando os senhores Duque de Bellune e Senevier vieram a Peniche; Suas Excias. sabem o resto. Eu preferi fazer uma oferta este cipo, duas vezes salvo por mim, a um imperador,os monumentos antigos, numa palavra, ao que cultiva a ciência, que aprecia os monumentos antigos, numa palavra, ao Primeiro Homem do Século, a deixá-la neste pequeno país, ignorado, sem utilidade para a ciência da Historia, exposto a ser um dia destruído pela ignorância de qualquer bárbaro vestido de homem civilizado.
Pelo que diz respeito à inscrição estou persuadido de que a sua primeira palavra é POMPElAM e as duas ultimas letras E. C... Era Cesaris. Os povos antigos, assim como as modernos, tinham o costume de dar aos países que conquistavam, ou descobriam, nomes da mãe pátria e é muito possível que os Romanos tivessem dado o nome de Pompeia, por imitação do nome da Pompeia da Campânia, perto de Herculano, que ainda não tinha desaparecido, à Península de Peniche: esta humilde opinião admite que a inscrição faz, sem dúvida, alusão ao feito de armas pelo qual os Hermínios foram vencidos.

Como vemos, esta história despertou a atenção de Pedro Cervantes, que acabou por encontrar uma peça importante para a nossa história, no entanto pode-se ter esticado nas suas interpretações, como podemos ver na análise de Mariano Calado:

É pena que esta tão importante peça não faça hoje parte do património local, encontrando-se no Museu do Louvre. Todavia, algumas das dúvidas levantadas por Pedro Cervantes, ao tempo da sua descoberta, podemos vê-las, agora, esclarecidas, graças a amabilidade da Dr. Catherine Metzger, conservadora daquele Museu. Trata-se, na verdade, de um bloco de pedra negra, vulcânica, espécie de basalto, com 0,45 cm. de altura, 0,425 cm. de largura e 0,08 cm. de espessura (quando foi descoberto as suas dimensões eram diferentes, pelo que terá sido, posteriormente, desbastado), no qual se encontra gravada a inscrição (confirmada pelo Professor N. Duval, da Sorbonne) POMPEIAE EPAGATHE L TERENTIVS FVRNVS MARIT ET L TERENTIVS RVFVS F C, cuja possível tradução será: A Pompeia Epagata, Lilcia Teréncio Furno, seu marido e Lzlcio Teréncio Rufo, mandaram fazer (este monumento).É, sem dúvida, uma pedra tumular e, não sendo razoável admitir que, com os cerca de trezentos quilos que pesava, tenha sido transportada de longe, é legitimo considerar que a sua gravação tenha sido operada no local (talvez utilizando basalto da brecha vulcânica da Papoa), em memória de Pompeia, cidadã de uma comunidade romana que em Peniche terá vivido. Além do mais, a dar força à tradição, é muito possível que este cipo tenha qualquer relação com as outras duas pedras com inscrição de letra antiga em idioma estrangeiro, nas quais se entendia o nome de Julio Cesar, de que fala o manuscrito de 1721 atrás citado.

Será que as pedras que supostamente carregavam o nome de Júlio César comprovando a fundação de Peniche pela fuga dos lusitanos que viviam na Serra da Estrela não passavam de pedras tumulares com um significado bastante diferente? Será que ainda se encontram na fonte (perto da antiga estação dos correios) para a qual foram transferidas em 1671? Será que foram retiradas e incorporadas noutra construção? Não é fácil encontrar respostas para estas perguntas, mas julgo que vale a pena tentar. Talvez um dia um estudioso com uma pá possa desvendar mais alguns pormenores sobre a Igreja de São Vicente, a fundação de Peniche, e, quem sabe, a origem da vida na Terra.

4 comentários:

  1. Depois de ler o post, que tem muito interesse, venho lembrar que na igreja da ajuda existe um lava mãos decorado com uma imagem de S. Vicente em azulejo. Poderá ter alguma relação com com a Igreja de S. Vicente, que existiu, como foi referido, em zona pertencente ao Adro da Ajuda.

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  2. Obrigado pela informação. É possível ser original da Igreja de São Vicente, pois pelo que me disse o Sr. Fernando Engenheiro, pelo menos a cantaria de uma porta também terá encontrado novo uso na Igreja da Ajuda.

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  3. Gostava de seguir o seu blog mas não sei como! Acho -o com mt interesse.

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    1. Obrigado, o seu também é muito interessante :)
      Eu também não sei como se seguem blogs, o que lhe posso dizer é para vir passando cá, normalmente não tenho nada de especial para dizer mas estou a tentar arranjar tempo para fazer alguns artigos minimamente decentes sobre a evolução da indústria conserveira na região - mas também não sei quando isso vai ser :)

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