pequeno guia do património esquecido e ostracizado #3.3 adro do convento

No final do século XIX, o convento já tinha sido despojado de todas as suas obras de arte, incluindo os azulejos que cobriam todo interior da igreja (e que foram destinados para as Igrejas da Ajuda e da Conceição). Parte do claustro também já tinha sido demolida (provavelmente para aproveitar pedra...) pelo que o que restava do convento era a igreja, o adro (recinto de entrada no complexo, como o da Capela de Nossa Senhora dos Remédios mas mais comprido) e algumas construções.


Nesta vista de satélite tirada antes da construção do Continente, podemos ver como no decorrer do século XX o adro foi aproveitado para fazer um armazém através da adição de um telhado, o resto do claustro foi destruído e foi construída a discoteca Konvento.


Atualmente, o cenário é este:


Gostava de explorar com algum detalhe a destruição do convento porque me parece que a versão oficial não é suficientemente rigorosa. A versão oficial, que eu ouvi num (aliás bastante interessante) passeio guiado pelo Dr. Rui Venâncio (responsável pelo museu municipal e pelo pelouro da cultura da autarquia) é que durante a escavação foram encontrados vestígios históricos que foram preservados naquilo que é uma solução "exemplar".
No entanto, eu creio que entre esta versão e a realidade há algumas discrepâncias, nomeadamente por os vestígios históricos não serem mais do que as fundações do que tinha sido destruído meses antes e a sua descoberta se dever a arqueólogos de uma empresa privada que vieram devido a uma denúncia anónima ao IGESPAR. Além disso, segundo a vontade da autarquia as estruturas teriam sido demolidas para dar lugar a uma conduta de saneamento, e só o esforço dos arqueólogos conseguiu evitar a destruição das ruínas.

Posto isto, vamos a uma resenha cronológica dos acontecimentos.

Na altura em que estávamos a fazer o trabalho, sabia-se que o Continente ia ser construído na zona do convento, mas havia gente a pensar que ia tudo abaixo e gente a dizer que não se ia mexer no monumento. Dirigi-me à Câmara Municipal para saber onde seria construído o edifício, mas negaram-me fornecer qualquer informação devido a ser uma empreitada privada.

Em junho de 2010 fiquei mais sossegado quanto ao destino da igreja, pois reparei que o seu proprietário, Sr. Luiz de Almeida, tinha mandado emparedar as portas laterais e abrir uma entrada no sítio original, o que me permitiu deduzir que pelo menos este espaço seria poupado.



Nessa altura, se bem que provavelmente bastante diferente do original, era este o aspeto da casa que ficava encostada à base do Intermarché, entre a igreja e o adro.


E era assim a vista para o adro:


Com os meus colegas, tive oportunidade de explorá-lo:


Já na construção encostada à entrada do adro que aparece nas gravuras antigas não tive oportunidade de entrar:


No entanto, ela despertava-me bastante curiosidade, aguçada por pormenores como esta parede dupla:


Mas só depois da sua demolição, em contacto com os arqueólogos que expuseram as suas fundações, pude saber o que era originalmente.

No dia 8 de Agosto de 2010 dei conta de que tinham começado a arrancar a cobertura do adro.


No dia seguinte o telhado foi removido quase por completo.


No dia 10 deixei de parte a vigilância do património e fui à praia. Dia 11 o adro tinha desaparecido por completo, bem como a construção que ficava junto dele.


Nesta altura pensei que nada mais pertencente ao convento seria destruído (e o que fora já tinha ultrapassado as minhas piores expectativas), mas em outubro desse ano dei conta que as máquinas tinham andado a mexer nas fundações das estruturas que tinham demolido no verão:



Depois disso, a obra parou algumas semanas. Vim a saber que tal se devia a ter havido uma denúncia anónima para o IGESPAR a comunicar que tinham sido descobertos vestígios arqueológicos, o que obrigou à deslocação de uma equipa de arqueólogos, sob a alçada da Dr. Cláudia Cunha.


Esta equipa escavou a zona que supostamente seria destruída para passar uma conduta de saneamento do Continente. Perante os vestígios descobertos, os SMAS não se mostraram muito disponíveis para fazer alterações ao projeto, devido às normas de segurança que era necessário verificar, mas graças à insistência dos arqueólogos as ruínas foram preservadas e estão hoje debaixo da Rua Raul Solnado.


Quando soube que tinham sido descobertas ruínas fui chatear os arqueólogos para saber o que tinham encontrado. A investigação começou pela abertura de duas sondagens. Sobrepondo-as sobre o mapa do convento percebemos a sua localização:


A próxima figura, tirada do relatório da escavação, mostra o desenho das fundações descobertas (à medida que iam sendo descobertas estruturas em zonas destinadas à implantação da conduta as sondagens iam sendo ampliadas):


Através de fotos tiradas pelos arqueólogos, podemos ver o que foi descoberto:


A tal casa que ficava à entrada do adro provavelmente dataria do século XV e na sua função original era um pátio com acesso a uma fonte que depois de escavada pelos arqueólogos brotou água. A fonte tinha uma decoração rococó com motivos marítimos:

Associados a essa fonte estavam canais que partiam em direção ao outro poço do convento e à Fonte do Rosário (esta informação não pôde ser confirmada pois nesta altura já a construção do Continente já tinha destruído tudo o que se encontrava no prolongamento das estruturas).


Além destas construções, foram descobertos artefactos históricos que documentam toda a ocupação humana daquele espaço, desde o convento até à pré-história.

Nesta imagem podemos ver o buraco causado pelo início das obras para a instalação da conduta, que se não tivessem sido paradas a tempo, tinham arrancado grande parte da estrutura:


No entanto, todas as estruturas acima da superfície e no sítio onde foi construído o Continente já tinham sido arrasadas, pelo que isto é apenas uma amostra de todo o potencial arqueológico deste sítio que se perdeu para sempre sem qualquer investigação preliminar.
Nos próximos tempos, em principio temos a garantia de que pelo menos as estruturas das fotos não serão afetadas pois passa uma estrada por cima delas. Mas a igreja do convento, situada num sítio em frente ao mar com um enorme potencial turístico, provavelmente será destruída, e se não for para dar lugar a um hipermercado há-de ser um hotel ou um condomínio, e se não for o Sr. Luiz de Almeida e o Sr. Belmiro de Azevedo a lucrarem com isso há-de ser outro particular qualquer. E se não for o Dr. Rui Venâncio a fechar os olhos para não criar entraves aos planos da autarquia há-de ser outro responsável pelo património a demitir-se das suas obrigações.

No entanto desta vez acho que há algo que ainda posso fazer. À população não interessa se vai meio convento abaixo para agradar a interesses privados ou se Peniche caminha para o interesse cultural de uma Amadora, e eu habituei-me a não encontrar compreensão para o meu desalento. 
Só que gosto que as coisas fiquem registadas tal como realmente aconteceram. Por isso, a minha única utilidade nesta matéria será continuar a fornecer aos historiadores e arqueólogos que estudarem o convento os elementos que tenho. Para que a história recente do convento fique escrita em sede própria sem incorreções. E os factos falam por si.

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