como enterrar os maias

Os leitores deste blog que frequentaram o ensino secundário porventura foram obrigados a ler Os Maias, tal como eu.
Aliás, eu além de os ler também tive de participar numa encenação da obra, para a qual escrevi o guião. Como o grupo tinha mais gente do que as personagens do livro, tive de pegar num trecho da obra e entre as falas originais meter as de personagens inventadas por mim de forma a comportar todo o grupo. 


Apreciadores de Eça de Queirós são fortemente desencorajados a prosseguir a leitura deste post.



Ega – Mas onde é que eu pus a charuteira?
(Ega procurando nos bolsos do casaco)
Mordomo – A charuteira, senhor?
Ega – Sim, sim, a charuteira!
Mordomo – Para que é que Vossa Excelência deseja a charuteira?
Ega – Ora essa, homem! Para fumar um charuto!
Mordomo – Não estará nos bolsos do casaco de Vossa Excelência?
Ega – Mas é aí onde eu estou a procurar! Olhe, saia-me da frente! Saia, saia!
(Ega vai ter com Maria Eduarda)
Ega – Então, quando partimos?
Carlos – Para onde?
Ega – Ora essa, para o Sarau da Trindade!
Carlos – É uma seca!
Ega – Também é uma seca subir as pirâmides do Egipto!
Carlos – É por isso mesmo que eu nunca lá fui!
Ega – Mas não é todos os dias que se sobe a um monumento com 4 mil anos! E a senhora D. Maria, podia ver neste sarau uma coisa também rara! A alma sentimental de um povo exibindo-se num palco, ao mesmo tempo nua e de casaca. Vá, coragem! Um chapéu, um par de luvas e a caminho!
Maria – Sim, tudo bem mas hoje estou mesmo estafadinha.
Ega – Bem, eu é que não quero perder o Rufino… Vamos lá, Carlos, mexe-te!
Carlos – Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do Hamlet. Temos tempo. Esse Rufino, e o Alencar e os bons, só falam mais tarde.
Maria (a cantar) – Pâle et blonde fort sois l’eau profonde…
Rosa – Mãe, mãe… Assim não consigo dormir…
Maria – Rosa, meu amor… Prometo que não canto mais… Vai lá dormir sossegada.
Rosa – Boa noite! Boa noite!
(Rosa vai-se embora)
Carlos – Quem é por fim esse Rufino?
Ega – Dizem que é um deputado, um bacharel, um inspirado… Pelos vistos é sublime nessa arte de arranjar, numa voz de teatro e de papo, combinações sonoras de palavras.
Carlos – Detesto isso!
Rosa – Acordaram-me outra vez! Estou a ver que assim não consigo dormir!
Carlos – Desculpa, desculpa! Juro que não volta a acontecer!
Empregada - Vá, vamos para a cama, vamos ter uma boa noite de sono!
Rosa- Também estás com sono?
Empregada - Eu depois logo me deito… Deita-te tu agora, que precisas de dormir.
Ega - Bem, eu cá vou já ter à Trindade, antes que perca o Rufino.
Mordomo – Aqui tem o seu casaco, senhor!
Ega – Mas esse não é o meu casaco!
Mordomo – Então boa noite para Vossa Excelência!
Ega (apressado) – Pois, sim…boa noite…
Carlos – Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui. Maria toca Beethoven, nós declaramos Musset e Hugo, os parnasianos, temos padre Lacordaire, se te apetece a eloquência, e passa-se a noite numa medonha orgia de ideal!
Maria – E há melhores cadeiras!
Carlos – Melhores poetas.
Mordomo – E Vossas Excelências têm bons charutos e bons conhaques.
Empregada – Mas se os senhores fizerem essa festarola toda a menina não vai conseguir pregar olho!
Maria – é bem verdade, é bem verdade…
Ega – Então e o Cruges!?
Mordomo (confuso) – O Senhor Cruges está a dormir com a menina Rosa!?
Ega – Não, não é nada disso! O Cruges toca hoje umas das suas “Meditações de Outono”.
Carlos – Não digas mais! Esquecia-me o Cruges! É um dever de honra! Abalemos.
(Carlos e Ega saem de casa, e já na rua encontram um mendigo.)
Mendigo – Alguma coisinha por favor!
Ega (agarrando o casaco de Carlos) – Voltemos para casa.
Mendigo – Por favor! Por favor! Não tenho nada para comer!
Carlos – Está bem, está bem! Olhe, vá tocar à campainha daquela casa e peça um bocado de pão.
Mendigo – Mas eu não gosto de pão!
Carlos – Então peça outra coisa qualquer! Sei lá!
(O mendigo toca à campainha da casa de Maria Eduarda)
Empregada – Quem é? Quem é?
Mendigo – Apenas um pobre mendigo, minha senhora!
Maria – Tome lá um bocado de pão.
Mendigo – Mas eu não gosto de pão, minha senhora!
Rosa – O que é que foi agora!? Mas quem é este senhor?
Maria – Ó meu amor, acordaste outra vez! Este senhor não interessa!
Mendigo – Está a dizer que eu não interesso!?
Maria – Não, não era isso que eu queria dizer… Anda, Rosa, vamos para a caminha.
Mendigo – E não me pode dar nada para comer?
Maria – Melanie, vem tu dar qualquer coisa a este senhor, que eu vou adormecer a Rosa.
Empregada – Olhe, tem aqui estas fatias de pão…
Mendigo – Mas eu cá não gosto de pão!
Empregada – Então veja lá do que gosta
( A empregada sai, deixando o mendigo sozinho na sala. O mendigo pega em muitos objectos e foge.)
Mordomo – Melanie, Melanie!
Empregada – Sim, que foi!?
Mordomo – Olha aqui, levaram tudo, não temos nada!
Empregada – Sim, tens razão… Mas olha…
Mordomo – O quê!?
Empregada – Ao menos ainda nos resta o pão!









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