Mesmo nestas condições começámos a organizar o trabalho
partidário, tendo sido dada toda a prioridade ao estudo das possibilidades de
fuga.
Nunca me conformei com a ideia de que haja alguma prisão absolutamente
invulnerável. Passámos a estudar com atenção todas as hipóteses, os riscos e o
grau de possibilidades de tal ou tal hipótese. As nossas dificuldades eram
acrescidas pelo facto de em qualquer caso excluirmos actos de violência que
pudessem conduzir à perda de vidas. Antes, procurar explorar qualquer possibilidade
de colaboração, aliciamento ou "distração" da parte dos guardas.
Formámos um organismo restrito, constituído por Álvaro
Cunhal, Joaquim Gomes e eu próprio, com a incumbência exclusiva de estudar
sistematicamente todas as hipóteses de fuga. Mesmo com as dificuldades de
comunicação existentes, reuníamos todos os dias.
Numa dada altura, por meados de 1959, o camarada Joaquim Gomes conseguiu meter conversa, através das grades da janela da sua cela, com o guarda da GNR que fazia ali serviço e que viria a ser a chave mestra da fuga, o soldado Jorge Alves. Dessa conversa pôde concluir-se estarmos perante uma pessoa revoltada, como havia muitas, por razões puramente profissionais que se extravasavam de forma vaga para o plano político. Percebeu-se que o homem se considerava prejudicado na sua carreira profissional, pois, segundo ele, já deveria ter sido promovido a um posto superior, "talvez já devesse ser sargento". Escusado será dizer que o camarada Joaquim Gomes apoiou a sua revolta procurando conduzi-la para o plano político. Tudo isto em conversas muito rápidas e soltas nos períodos em que o soldado da GNR estava de serviço. O regulamento de serviço proibia lhes terminantemente conversar ou alimentar qualquer conversa com os presos políticos. O certo é que a conversa foi evoluindo e nas vezes que o guarda Jorge Alves passou por aquele serviço de "diligência" em Peniche a situação ficou suficientemente amadurecida para, por via partidária, o "cerco político" passar a fazer-se no exterior.
Deve insistir-se no melindre destes contactos unia vez que este homem não tinha nenhum esclarecimento político. O que eventualmente o podia levar a colaborar nos nossos propósitos era o sentimento de revolta e algum interesse material. No tratamento destas questões com a direção do partido no exterior, tudo era tratado literalmente em cifra escrita em papel de mortalha, mais facilmente "passável" pelas malhas da vigilância dos carcereiros. Em virtude dum comportamento calculado, na relação com os carcereiros, havíamos conquistado nesse período uma série de "regalias" no dia-a-dia prisional. Tínhamos jornais que circulavam livremente de cela em cela, passámos a ter acesso ao refeitório à tarde, com hora de leitura suplementar. Podíamos praticar jogos de xadrez e damas e, a partir de certa altura, foi mesmo autorizada a audição de discos, num gira-discos vindo do exterior e montado no refeitório. Esta situação aumentou as nossas possibilidades de contacto de uns com os outros.
Nos últimos dois meses de 1959, o plano de fuga avançou rapidamente na sua concretização graças ao trabalho desenvolvido no exterior pelo Secretariado do Comité Central, constituído então por Octávio Pato, Joaquim Pires Jorge e António Dias Lourenço. O guarda da GNR, Jorge Alves, foi definitivamente ganho para nos ajudar na fuga, ainda que com muitas hesitações e receios e na condição de o colocarmos no estrangeiro após a fuga, assim como duma certa quantia em dinheiro para sustentar os familiares, enquanto estes não se juntassem a ele.
Numa dada altura, por meados de 1959, o camarada Joaquim Gomes conseguiu meter conversa, através das grades da janela da sua cela, com o guarda da GNR que fazia ali serviço e que viria a ser a chave mestra da fuga, o soldado Jorge Alves. Dessa conversa pôde concluir-se estarmos perante uma pessoa revoltada, como havia muitas, por razões puramente profissionais que se extravasavam de forma vaga para o plano político. Percebeu-se que o homem se considerava prejudicado na sua carreira profissional, pois, segundo ele, já deveria ter sido promovido a um posto superior, "talvez já devesse ser sargento". Escusado será dizer que o camarada Joaquim Gomes apoiou a sua revolta procurando conduzi-la para o plano político. Tudo isto em conversas muito rápidas e soltas nos períodos em que o soldado da GNR estava de serviço. O regulamento de serviço proibia lhes terminantemente conversar ou alimentar qualquer conversa com os presos políticos. O certo é que a conversa foi evoluindo e nas vezes que o guarda Jorge Alves passou por aquele serviço de "diligência" em Peniche a situação ficou suficientemente amadurecida para, por via partidária, o "cerco político" passar a fazer-se no exterior.
Deve insistir-se no melindre destes contactos unia vez que este homem não tinha nenhum esclarecimento político. O que eventualmente o podia levar a colaborar nos nossos propósitos era o sentimento de revolta e algum interesse material. No tratamento destas questões com a direção do partido no exterior, tudo era tratado literalmente em cifra escrita em papel de mortalha, mais facilmente "passável" pelas malhas da vigilância dos carcereiros. Em virtude dum comportamento calculado, na relação com os carcereiros, havíamos conquistado nesse período uma série de "regalias" no dia-a-dia prisional. Tínhamos jornais que circulavam livremente de cela em cela, passámos a ter acesso ao refeitório à tarde, com hora de leitura suplementar. Podíamos praticar jogos de xadrez e damas e, a partir de certa altura, foi mesmo autorizada a audição de discos, num gira-discos vindo do exterior e montado no refeitório. Esta situação aumentou as nossas possibilidades de contacto de uns com os outros.
Nos últimos dois meses de 1959, o plano de fuga avançou rapidamente na sua concretização graças ao trabalho desenvolvido no exterior pelo Secretariado do Comité Central, constituído então por Octávio Pato, Joaquim Pires Jorge e António Dias Lourenço. O guarda da GNR, Jorge Alves, foi definitivamente ganho para nos ajudar na fuga, ainda que com muitas hesitações e receios e na condição de o colocarmos no estrangeiro após a fuga, assim como duma certa quantia em dinheiro para sustentar os familiares, enquanto estes não se juntassem a ele.
Como a próxima "diligência" em Peniche da companhia da GNR a
que o Jorge Alves pertencia estava marcada para o mês de Janeiro de 1960, tudo
foi combinado, por proposta dele, para o dia 10. Subitamente, por razões não
explicadas, já no dia 1, ele antecipou a acção para o dia 3 de Janeiro.
De fora deveriam chegar ate nos dois sinais distintos, confirmando que no exterior tudo estava preparado para a nossa retirada em segurança, a partir de locais da vila de Peniche previamente combinados, para a recolha dos grupos por nós definidos.
Um dos sinais, o primeiro, deveria ser-nos dado através das
visitas, logo a seguir ao almoço. Este sinal, por dificuldades surgidas nos
encontros no exterior, falhou, não foi dado.
O segundo sinal consistia no aparecimento no largo fronteiro
as celas do lado Norte, de um carro com a tampa dos porta-bagagens levantado, o
qual, após percorrer alguns metros bem à vista de nós, parava e o seu condutor
saí calmamente do automóvel e fechava a tampa do porta-bagagens.
Este sinal concretizou-se. À hora combinada, o carro, conduzido pelo
militante comunista e conhecido actor teatral Rogério Paulo, realizou com
perfeição esta manobra.
No interior da cadeia, ficámos algo perturbados com a falta do
primeiro sinal. Estabeleceu-se alguma discussão sobre se a fuga deveria ir para
diante com tais condições. Houve quem levantasse dúvidas, e eu fui um deles,
quanto a lançarmo-nos numa ação de tão grande responsabilidade face à ausência
do sinal de avançar vindo do exterior. Foi decidido fazer-se uma rápida
auscultação entre os camaradas envolvidos na fuga, tendo¬se optado
maioritariamente pela decisão de ir para a frente.
Quando surgiu o segundo sinal já tudo estava decidido quanto
à concretização da fuga.
A partir desse momento desencadeou-se toda a preparação dos
preparativos "irreversíveis" — rasgar lençóis em tiras e uni-los com nos
sólidos previamente estudados, fazendo ainda mais dois nós em cada tira de modo
a reforçar a "corda" assim formada e a facilitar a segurança da descida.
Os camaradas que ficaram responsáveis por esse trabalho
utilizaram os seus próprios lençóis. Na hora H seriam todos juntos e entregues
ao Francisco Miguel. que se encarregou da ligação das partes com uns nós
especiais, a pescador, em que ele se especializara.
As ampolas com o clorofórmio para neutralizar o guarda
prisional encontravam-se também já em nosso poder.
Após a hora do jantar, que foi assistido nesse dia pelo
guarda Serrado, cerca das 19 horas, desencadeou-se a "operação". O sinal de
partida foi dado, sem o saber, pelo próprio guarda ao apitar para nos
levantarmos após a refeição.
No corredor e a saída do refeitório formou-se um "cortejo" de camaradas de modo a envolver o guarda, distraindo-o sobre qualquer sinal de
nervosismo que eventualmente se manifestasse da nossa parte.
Deve lembrar-se que todos os presos desse 3.° piso estavam a
par, de um modo geral, sobre o que se preparava. Todos foram informados e
consultados previamente quanto à disposição ou interesse em participar na fuga,
de tal modo que com alguma antecedência se soubesse quem ia fugir e quem
ficava.
O critério que presidiu a esta selecção partiu do princípio
de que quem fugia da cadeia era para continuar luta na clandestinidade, logo
foram seleccionados todos os que estavam nessa disposição.
Assim, fugiram: Alvaro Cunhal, Jaime Serra, Joaquim Gomes,
Carlos Costa, Francisco Miguel, Pedro Soares, Guilherme da Costa Carvalho, Rogério de
Carvalho. José Carlos e Francisco Martins Rodrigues.
Ficaram na Cadeia, por opção própria ou por não se
enquadrarem no critério atrás referido, Borges Coelho, Humberto Lopes, Manuel
Andrade e António Rego. Estes, embora não fugindo, deram à execução da fuga
todo o apoio que puderam.
O processamento da fuga foi muito rápido porque todos os
passos estavam cronometrados com rigor e cada um sabia o que tinha a fazer,
incluindo a ordem de saída.
No momento previsto e como estava combinado entre nós, o
guarda Serrado sentiu cerrado à volta do pescoço um laço feito com uma toalha,
tendo ficado imobilizado quase instantâneamente. Esta tarefa foi realizada pelo
camarada Guilherme de Carvalho, que dela Ioi incumbido por ter uma constituição
física adequada para o efeito. O clorofórmio foi aplicado de imediato e foi-lhe
metida na boca a pega metálica utilizada habitualmente nos hospitais para
segurar a língua de modo a evitar que o paciente fique asfixiado.
Como se esperava, o guarda nem “piou”, tendo sido metido em
estado inconsciente numa das celas que ficou vazia. Havia certa preocupação
dado o facto de termos sido prevenidos que o clorofórmio é mais difícil de atuar
sobre indivíduos alcoólicos. O guarda Serrado era um desses. Felizmente que ao
efeito do clorofórmio se juntou o efeito do susto de tal modo forte que,
segundo soubemos depois, quando o foram libertar cheirava mal...
Os camaradas que ficavam recolheram às suas celas, tendo
eles próprios fechado as suas portas. No refeitório, o nosso gira-discos ficou
a tocar uma bonita sinfonia, a Patética de Tchaikóvski...
A segunda fase da operação desenrolou-se no exterior do
bloco prisional sob a responsabilidade do guarda Jorge Alves. Como estava
previsto, juntamente com o camarada Alvaro Cunhal, constituímos o primeiro
grupo a percorrer, sob a capa do guarda Jorge Alves, a distância que nos
separava duma horta existente num terreno subjacente à muralha da Fortaleza por
onde íamos descer.
Tendo alcançado o torreão da fortaleza, tratámos de amarrar solidamente a uma fresta desse torreão uma ponta da "corda" de tiras de lençol por onde descemos.
Tendo alcançado o torreão da fortaleza, tratámos de amarrar solidamente a uma fresta desse torreão uma ponta da "corda" de tiras de lençol por onde descemos.
Na descida verificaram-se dois acidentes: com o Guilherme da
Costa Carvalho, que se feriu na face ao cair de uma certa altura, e com o Pedro
Soares, que também caiu, ainda dentro da Fortaleza, ao saltar para uma horta,
tendo torcido um pé.
A parte final da fuga, assim como a retirada, não decorreram
exatamente como estava previsto, por dificuldades resultantes do comportamento
do guarda Jorge Alves nessa fase final. Assustado pelo facto de ter sido
confrontado com o aparecimento de um número de fugitivos superior ao que
provavelmente lhe haviam dito, entrou em pânico e ia deitando tudo a perder.
Valeu, na oportunidade, a serenidade e determinação dos camaradas que se
confrontaram com essa situação, particularmente do camarada Joaquim Gomes.
Por este facto, o carro conduzido por Lindim Ramos
transportou menos dois fugitivos do que estava previsto (Carlos Costa e Pedro
Soares) e o outro carro, conduzido pelo camarada Carlos Plácido de
Sousa, teve de transportar oito pessoas — sete fugitivos mais o condutor. Valeu
a circunstância de se tratar de um grande carro americano que transportou toda
aquela gente sem dificuldades embora, por uma questão de segurança, dois deles
fossem deitados de modo a não serem vistos do exterior.
A despeito daqueles pequenos acidentes, concluiu-se com
pleno êxito uma das mais audaciosas e espetaculares fugas de toda a longa
história do regime fascista. Ela constituiu para os salazaristas uma profunda
derrota, na mesma medida em que constituiu para o PCP uma extraordinária
vitória política, ao recuperar para a luta uma dezena de destacados dirigentes
do partido, incluindo aquele que viria ser o seu secretário-geral, o camarada Álvaro
Cunhal. A repercussão nacional e internacional foi enorme, constituindo, além
do mais, uma grande humilhação para o regime.
Jaime Serra
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