Não era, aliás, uma façanha inédita: já no passado alguém
conseguira evadir-se pela furna, que tinha uma abertura para a parada, com a
ajuda de uma pequena bateira. Por isso os carcereiros tinham reforçado a segurança
naquela zona para evitar novas fugas.
Alguns de nós tínhamos passado pelo "segredo" longos
períodos e por várias vezes. Nos muitos dias que ali vivemos tivemos ocasião de
imaginar e estudar todas as várias possibilidades de evasão. Como também observámos
os diversos obstáculos que podiam levar ao seu fracasso.
O "segredo" consistia nuns
pequenos cubículos com uma única porta de madeira, grossa e reforçada com algumas cintas metálicas. Mantinham-se permanentemente fechadas, com fechaduras
e ferragens exteriores. O chão era cimentado. A vigilância permanente era feita
por um guarda prisional a partir de um posto a cerca de 50 metros de distância.
Duas sentinelas da GNR, de ângulos diferentes, vigiavam-no com intermitências.
O portão exterior do redondo mantinha-se sempre aberto, a
área bem iluminada e o guarda tinha a recomendação de manter a porta do "segredo" sob vigia. A ronda passava de duas em duas horas: batia com as chaves
ou chamava e esperava que respondêssemos.
A porta só se abria nas horas das refeições — de manha, ao
café, ao almoço e ao jantar. Nas horas de abertura de manhã e de fecho à noite
íamos às muralhas, acompanhados do guarda fazer despejos para o mar.
Qualquer tentativa de evasão comportava grandes riscos e o
seu êxito dependia, em grande medida, de muita audácia, muita coragem e
determinação e um bom sentido organizativo para levar à prática um plano bem
arquitetado. E também era preciso alguma sorte...
Foi naturalmente um pequeno número de pessoas que estudaram o plano de fuga do «segredo». Nesse grupo estava o Dias Lourenço, seu grande entusiasta e principal personagem. Acabou por ser ele a ir parar ao "segredo" e a pôr em pratica o plano. Por várias razões mas também porque era, entre todos, o que melhor nadava. O grande perigo estava no mar...
Para sair do "segredo" o único meio era abrir um postigo na porta, de tamanho suficiente para passar um corpo. Para isso era necessário uma boa faca com bico bem afiado... e tempo. O tempo nunca foi problema para um preso, e quanto a faca o Dias Lourenço lá arranjou uma boa faca de sapateiro que conseguiu fazer passar consigo quando ingressou no "segredo", tarefa nada fácil porque os que entravam eram despidos em pelota e as roupas e objectos pessoais pesquisados com minúcia.
Foi naturalmente um pequeno número de pessoas que estudaram o plano de fuga do «segredo». Nesse grupo estava o Dias Lourenço, seu grande entusiasta e principal personagem. Acabou por ser ele a ir parar ao "segredo" e a pôr em pratica o plano. Por várias razões mas também porque era, entre todos, o que melhor nadava. O grande perigo estava no mar...
Para sair do "segredo" o único meio era abrir um postigo na porta, de tamanho suficiente para passar um corpo. Para isso era necessário uma boa faca com bico bem afiado... e tempo. O tempo nunca foi problema para um preso, e quanto a faca o Dias Lourenço lá arranjou uma boa faca de sapateiro que conseguiu fazer passar consigo quando ingressou no "segredo", tarefa nada fácil porque os que entravam eram despidos em pelota e as roupas e objectos pessoais pesquisados com minúcia.
Para descer das muralhas até ao mar era necessário uma
corda. As três mantas que nos distribuíam, rasgadas em tiras, podiam servir de
corda. Lembra-me de uma pequena dúvida que se levantou na discussão deste pormenor:
do alto das muralhas até ao mar seriam cerca de 16 metros medidos o que
obrigava a uma corda resistente.
O outro risco era poder ser visto pelo guarda da porta em
frente, ao sair pelo postigo. Também me recordo que foi lembrada a conveniência
de aproveitar, se possível, o turno do guarda Samuel, um velhote inofensivo que
às vezes até se metia nos copos.
Tudo foi previsto, inclusive o plano das marés de modo a
fazer coincidir a fuga com uma baixa-mar...
Estávamos em tempo de repressão e não foi difícil Dias
Lourenço apanhar inesperadamente alguns dias de castigo no "segredo". Não lhe
foi imediatamente possível levar à prática a saída e ao fim de dez dias
regressou à caserna coletiva.
Ao chegar disse-nos
que o postigo estava praticamente cortado. Pressionando a faca com a mão
conseguira fazer penetrar o bico até ao exterior. O postigo ficara preso apenas
em poucos locais. Os cortes finais seriam dados na noite da fuga e colocaria o
postigo no mesmo lugar para que o vigia, vendo o buraco na porta, não desse o alarme.
Só na primeira contagem às cinco da manha a fuga seria descoberta.
Tudo em ordem, só faltava fazer os restantes preparativos...
Naquele dia nenhum de nós pensava que a intervenção do
guarda Pôpa viesse apressar e colaborar nos planos da fuga... As circunstâncias
contribuíram para muita gente pensar (mesmo os carcereiros) que aquela ida para
o "segredo" foi provocada por nós ou pelo Dias Lourenço. Mas a verdade não é
essa. De fato esperava-se o momento oportuno. E o momento oportuno foi o guarda
Pôpa quem o precipitou.
O Dias Lourenço escrevia nesse dia urna mensagem para o
Partido (era ele quem nessa altura tinha essa tarefa). Estava sentado na cama
a um canto escondido da sala. O guarda Pôpa estava de serviço à nossa caserna e
passava de um lado para outro, em frente das janelas, como um cão perdigueiro â
procura da caça. Viu o Antonio recolhido no canto a escrever, desconfiou e
decidiu atacar. Abriu repentinamente a porta e entrou na caserna. O Dias
Lourenço dobrou negligentemente o papel e meteu-o na sua mala. Daí a pouco o Pôpa
foi à mala, abriu a tampa, tirou o papel e ia desdobrá-lo para ler. O António,
de surpresa, tirou-lho das mãos e meteu-o na boca. Envolveram-se em luta.
Enquanto engolia o papel foi levado aos empurrões para fora da sala.
Lembra-me que naquela confusão o Dias Lourenço ainda teve
tempo para me lançar um olhar significativo que eu interpretei como indicação
de que ia aproveitar a oportunidade.
O tempo que se seguiu à sua ida para o "segredo" foi para
todos nós tempo de preocupação e grande ansiedade. Esperávamos a todo o
momento, de dia e de noite, uma qualquer indicação do que se teria passado.
Teria conseguido sair pelo postigo? Como teria iludido a vigilância do guarda?
Como teria conseguido a descida da nitiralha para o mar?
Era todo um mundo de interrogações que nos preocupavam.
Sempre que um guarda se aproximava ou abria a porta da sala esperávamos poder
observar qualquer indício que fosse uma resposta à nossa ansiedade.
O tempo de espera não foi muito.
Numa manhã seguinte dois guardas entraram na caserna e
dirigiram-se para a minha cama. Pressenti imediatamente que tudo se tinha
consumado — para o bem ou para o mal.
— Onde estão as coisas do senhor Dias Lourenço? —
perguntaram, sem se dirigir particularmente a ninguém.
Todos os guardas sabiam onde ficava a cama do Dias Lourenço,
por isso se encaminharam para o nosso canto. Eu e o Dias Lourenço sempre
tivemos as nossas camas ao lado uma da outra, e as coisas mais importantes do
Dias Lourenço já eu as tinha misturado com as minhas.
Os guardas pegaram em tudo que lhes foi indicado e foram
levando. Insistimos para nos explicarem porquê. Não nos deram resposta. Mais
tarde conseguimos saber que tinha havido fuga, mas não sabíamos se ela se tinha
ou não consumado.
A nossa ansiedade aumentou quando, um ou dois dias depois,
os carcereiros fizeram correr a notícia que o Dias Lourenço devia ter-se
afogado porque algumas das suas roupas tinham sido recolhidas no mar.
Ficámos assim a saber que a fuga tinha sido um facto; que o
Dias Lourenço não tinha sido preso à saída do "segredo"; e que tinha conseguido
chegar ao mar. O aparecimento das roupas não nos preocupou muito: tínhamos uma
explicação para isso. A nossa principal preocupação era saber se tinha
conseguido chegar ao seu destino...
Mais tarde soube-se que naquela noite, em que Dias Lourenço decidiu dar início à fase final e mais difícil da fuga, os dados estavam lançados para o certo ou para o torto.
Joaquim Campino
Mais tarde soube-se que naquela noite, em que Dias Lourenço decidiu dar início à fase final e mais difícil da fuga, os dados estavam lançados para o certo ou para o torto.
Com as mantas fez a corda para descer para o mar e com a
faca procedeu ao corte da parte da madeira que ainda sustentava o quadrado que
abrira na porta a medida do seu corpo. Com todo o cuidado retirou o quadrado da
madeira voltando a colocá-lo para escapar à observação da próxima ronda.
Ao descer as rochas, observou que o mar estava mais agitado
do que havia previsto, com grande rebentação e ondas de respeito. Para
complicar as coisas, a corda havia ficado mais curta do que a distancia a
descer e por tudo isto entrou na água de forma descontrolada, tendo-se ferido e
perdido logo, levada pelas ondas, a roupa que que tinha presa à cabeça.
Nadou durante bastante tempo tendo acabado por ir parar não
à pequena praia que fica próximo da entrada da fortaleza, como pretendia, mas
sim a uma zona bastante afastada, nas proximidades do local onde então funcionava
a lota do peixe e onde havia a essa hora bastante movimento de pescadores e
negociantes de peixe que o transportavam em camionetas de venda.
Foi aos tripulantes duma dessas camionetas que Dias Lourenço
se dirigiu, pedindo boleia quando estes se aprontavam para partir com o peixe
que haviam comprado.
Pediu boleia para o Bombarral depois de informado que era
para esta terra que eles se dirigiam. Perante o seu aspeto, com barba de 15
dias e encharcado até aos ossos a resposta foi uma recusa terminante com o
argumento de que excedia a tripulação de sete homens e que teriam de passar
pelo controlo da polícia de trânsito à saída de Peniche.
Face a tal situação Dias Lourenço resolveu jogar tudo por
tudo. Disse quem era, um preso político que acabava de se evadir da fortaleza e
que se não lhe dessem boleia acabaria por voltar a ser preso. Perante tal
dilema, revelando um grande sentimento antifascista a tripulação da camioneta,
após uma rápida conferência entre eles, acederam ao seu pedido transportando-o,
escondido entre eles, até ao Bombarral onde encontrou apoio numa casa de
camaradas que já conhecia.
Jaime Serra
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