scouting #3 construções defensivas

Há umas semanas atrás fui percorrer o que restava do sistema defensivo da península de Peniche, mas só agora arranjei tempo para vos descrever o roteiro.

Nesta planta de 1846 assinalei a localização das fortificações:


Algumas fotos não foram tiradas no dia em que fiz o circuito, mas sim noutro em que tive oportunidade de obter uma melhor perspetiva, como é o caso desta, que capta por inteiro a Fortaleza vista do mar:


Os pavilhões atuais datam de 1956. Um relato da vida na prisão política, instalada em 1931, antes da remodelação é dado por José Magro:

A cadeia de Peniche (...) mantinha o estilo do velho forte do século XVII. água de cisterna transportada aos ombros e a balde. Casamatas nas muralhas. Pequenas ruas de edifícios térreos. Camaratas com traços das anteriores funções de cavalariças e outras. Havia a sensação de recuar uns séculos.

Fazemos um pequeno desvio até ao Forte de Santo António, frente à antiga igreja que partilha a designação.


Em seguida descemos até ao Forte das Cabanas, um monumento muitíssimo subestimado.
Qualquer monumento é subestimado em Peniche, mas este tem uma razão especial para a sua subestima: do sítio que o vemos, não temos noção da sua magnitude. O que vemos da estrada é isto:


Quando na verdade o Forte das Cabanas é uma fortificação isolada, muralhada a quase toda a volta e rodeada por água por todo o lado menos pela estrada que deu origem à Avenida do Mar (e agora pela comporta).


Do Forte das Cabanas seguia a Cortina do Cais.


Que deu a alma ao criador há meio século atrás para a construção da Avenida do Mar.


Os vestígios da defesa militar regressam no Meio-Baluarte da Misericórdia, que foi desvirtuado com a construção da Capitania e a Casa dos Pescadores.


No Baluarte da Ponte, a coisa descamba. Mais especificamente, os melrões. 
Não sei para quando será a execução da segunda fase das obras do fosso, mas era oportuno nessa altura arranjar toda esta zona, visto que depois de a estrutura de pedra ceder, a aceleração do processo de desabamento é muito maior.



No Meio-Baluarte de São Vicente a situação de dois merlões é a mesma. 



O resto dos merlões deste baluarte só ficaram a salvo porque em boa hora alguém construiu umas inestéticas mas eficazes rampas a suportá-los, que sem esse apoio já teriam cedido devido à força que a areia exerce dentro deles.


O monte de pedras à entrada do Quebrado corresponde à entrada da antiga Linha dos Moinhos, construída entre 1831 e 1832.


A praia do Quebrado deve o seu nome à muralha, ou melhor, à falta dela.
A muralha que ia do Meio-Baluarte da Camboa até ao Forte da Luz desabou aquando do terramoto de 1755. A seguinte foto mostra o local onde a muralha acaba:


 A partir daí o próximo vestígio é a base das antigas muralhas, na qual ainda se pode ver um túnel.


Em cima fica o Forte da Luz, que de ano para ano está a desabar cada vez mais depressa. Durante o meu percurso, tirei esta foto:


Há dois anos, tinha tirado esta foto no mesmo local:


Pois é, com a erosão não se brinca. Mesmo assim, acho que há males ainda possíveis de evitar, como o desabamento de alguns muros:


Mandei um mail com as três últimas fotos para o IGESPAR, que me disse tê-lo reenviado para a Direção Regional de Cultura, que até agora ainda não me contactou.
Quer isto dizer, o Forte da Luz está entregue à sorte, por isso quem o quiser visitar faça-o entretanto.
E leve um capacete da construção civil, não vá o diabo tecê-las.

Percorrendo a costa da Papôa, vamos dar a Oeste com o que resta das antigas baterias:



De volta a terra mais firme, passamos por um banco onde três senhores estão sentados, que é um aproveitamento das ruínas do Entricheiramento de São Miguel, construído em 1830 pelas tropas absolutistas.


Para chegar ao próximo ponto tem de se andar um bocado, trata-se do Forte da Vitória, por cima do qual foi construído o Restaurante Nau dos Corvos. A propósito, um excerto de um artigo do Professor Alves Seara n'A Voz do Mar:

Quando na década de sessenta A Voz do Mar por minha iniciativa decidiu realizar um ciclo de palestras, o Dr. Perpétua, fundador do ex Externato Atlântico, rotário de Porto de Mós, disse-me que para falar de turismo a pessoa indicada era um advogado de Leiria que também era rotário.
O restaurante Nau do Corvos já estava construído no mesmo espaço onde antes havia um miradouro e um posto semafórico que, por esse facto, já vinha sendo motivo de muita polémica.
No dia em que o advogado faria a sua palestra, fui buscá-lo a Leiria e, ao chegarmos a Peniche, pediu-me para continuarmos até ao Cabo Carvoeiro já que ele conhecedor de toda a costa que emoldura esta península onde nos encontramos (...) nunca se cansa de maravilhar-se com a sua beleza.
Fui deslizando vagarosamente parando aqui e além e, quando chegámos ao Cabo descemos do carro e perante o restaurante eis que, com uma ponta de indignação na voz, exclama:
-Estou roubado! Com este restaurante aqui foi subtraído ao domínio público uma vista panorâmica do oceano. E isso é crime!


Houvesse justiça no mundo e mandava-se abaixo o restaurante para ficarmos com o nosso pitoresco forte. Mas como no que toca a património da terra valores mais altos se levantam (especialmente os monetários) atualmente para se ter uma vista panorâmica sobre o mar é necessário subir ao terraço do restaurante, do qual também se pode observar um bocadinho da praça original do forte:


Estas fotos mostram a transformação:




E como último ponto para visitar temos a Bateria do Carreiro do Cabo, onde alguém achou por bem meter um peixe de pedra:


A única fortificação a desaparecer completamente foi o Forte do Porto da Areia Sul, que tinha esta configuração:


Como podemos ver, ainda há muitos vestígios da enorme ocupação militar que Peniche registou de meados do século XVI aos finais do XIX.
Isso acontece pois muitas estruturas militares estavam bastante afastadas do núcleo central da população, e assim evitaram ser demolidas para dar lugar a novas construções.
Exceções são as casernas da Fortaleza, que era um sítio ideal para a instalação de uma prisão de alta segurança, o Forte da Vitória, que estava num sítio estratégico para ser explorado comercialmente e o Forte do Porto da Areia Sul, num local de onde começou a ser extraída pedra.
Pela sua parte, a natureza, especialmente através da erosão, arrasou as estruturas defensivas da Papôa, para cuja ruína também contribuiu o saque da pedra de que eram feitas as fortificações. 

É uma pena que tão pouca gente conheça muitas das fortificações aqui expostas, pois assim também não haverá por parte da autarquia o interesse em preservá-las. 
Seria interessante investir num turismo cultural que tirasse partido do enorme potencial que há por aí na nossa terra. Sem ninguém a tomar conta do nosso património histórico, não podemos evitar que a natureza e o progresso o tome sem prestar contas.

6 comentários:

  1. Muito interessante. Seria uma boa aposta recuperar todo este património e divulgar a cidade como um destino turístico, não só de surf mas também de cultura arquitectónica cheia de história.

    Haja Dinheiro!

    ResponderEliminar
  2. O que me dá pena é que às vezes bastava uma betoneira e dois trolhas para salvar um monumento histórico, como por exemplo o Forte da Luz. Mas não, para se fazer qualquer coisa aqui é preciso projetos e financiamentos e não sei mais quê.

    ResponderEliminar
  3. E é preciso que o IGESPAR e a Direção Regional de Cultura o autorizem, o que nesses moldes (de dois trolhas e uma betoneira) não é nada fácil.
    Faltou referência a duas ou 3 baterias existentes entre a Papoa e o Cabo Carvoeiro quem só têm vestígios impercetíveis, ou quase.

    ResponderEliminar
  4. Sendo estes monumentos património da autarquia e não estando classificados, creio que proceder a reparações de emergência só depende da vontade da autarquia em autorizar as obras...
    Obrigado por mencionar as baterias, tenho de ir à procura delas. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Em relação à propriedade e à classificação deste património, aconselho-o vivamente a consultar o site monumentos.pt, com a devida atenção:

      http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=4063


      Aqui fica o excerto mais importante:

      Protecção
      MN - Monumento Nacional, Decreto nº 28 536, DG, 1.ª série, n.º 66 de 22 março 1938 / ZEP / Zona "non aedificandi", Portaria, DG, 2.ª série, n.º 71 de 24 março 1967 *1

      Observações
      *1: DOF ...e todas as muralhas militares que constituem os baluartes e cortinas existentes na vila. Sistemas defensivos adicionais (fortes e baterias), hoje desaparecidos, reforçavam outrora pontos estratégicos da costa (Cabanas, Luz, Nossa Senhora da Vitória, Portinho da Areia do S, Carreiro do Cabo).

      Votos de boas caminhadas.

      Eliminar
    2. Obrigado pelo esclarecimento. Foi-me explicado que o IGESPAR e a Direção Regional de Cultura não podiam intervir visto não haver a classificação destes imóveis, mas, e digo-o com toda a modéstia, o senhor percebe muito mais disto do que eu, por isso aceito com agrado a sua explicação.
      Mas, se não se importar, pergunto: neste caso concreto, que é a queda eminente de parte das muralhas do Forte da Luz, quem é que eu posso alertar para fazer no mínimo pequenas reparações que consistam (porventura) na criação de um suporte?

      Eliminar