fuga #3 1954

Quando se deu o fracasso da descoberta do túnel da sala 4, por onde se deviam evadir camaradas, tornou¬se claro para todos que o nosso plano de fuga coletiva estava prejudicado, pelo menos por algum tempo. Mas esse facto não afectou muito o ânimo de alguns camaradas que persistiam em encontrar um caminho para a liberdade e continuar a luta. Vários projetos individuais foram surgindo, entre eles o velho sonho de fugir do segredo.


Era a tentação de todos os presos que por lá passavam. E foram muitos nesse tempo. Quem não pensou em encontrar maneira de sair daquele redondo, de noite, descendo das muralhas para o mar e daí alcançar terra firme?!...
Não era, aliás, uma façanha inédita: já no passado alguém conseguira evadir-se pela furna, que tinha uma abertura para a parada, com a ajuda de uma pequena bateira. Por isso os carcereiros tinham reforçado a segurança naquela zona para evitar novas fugas.
Alguns de nós tínhamos passado pelo "segredo" longos períodos e por várias vezes. Nos muitos dias que ali vivemos tivemos ocasião de imaginar e estudar todas as várias possibilidades de evasão. Como também observámos os diversos obstáculos que podiam levar ao seu fracasso.

O "segredo" consistia nuns pequenos cubículos com uma única porta de madeira, grossa e reforçada com algumas cintas metálicas. Mantinham-se permanentemente fechadas, com fechaduras e ferragens exteriores. O chão era cimentado. A vigilância permanente era feita por um guarda prisional a partir de um posto a cerca de 50 metros de distância. Duas sentinelas da GNR, de ângulos diferentes, vigiavam-no com intermitências.
O portão exterior do redondo mantinha-se sempre aberto, a área bem iluminada e o guarda tinha a recomendação de manter a porta do "segredo" sob vigia. A ronda passava de duas em duas horas: batia com as chaves ou chamava e esperava que respondêssemos.
A porta só se abria nas horas das refeições — de manha, ao café, ao almoço e ao jantar. Nas horas de abertura de manhã e de fecho à noite íamos às muralhas, acompanhados do guarda fazer despejos para o mar.
Qualquer tentativa de evasão comportava grandes riscos e o seu êxito dependia, em grande medida, de muita audácia, muita coragem e determinação e um bom sentido organizativo para levar à prática um plano bem arquitetado. E também era preciso alguma sorte...

Foi naturalmente um pequeno número de pessoas que estudaram o plano de fuga do «segredo». Nesse grupo estava o Dias Lourenço, seu grande entusiasta e principal personagem. Acabou por ser ele a ir parar ao "segredo" e a pôr em pratica o plano. Por várias razões mas também porque era, entre todos, o que melhor nadava. O grande perigo estava no mar...


Para sair do "segredo" o único meio era abrir um postigo na porta, de tamanho suficiente para passar um corpo. Para isso era necessário uma boa faca com bico bem afiado... e tempo. O tempo nunca foi problema para um preso, e quanto a faca o Dias Lourenço lá arranjou uma boa faca de sapateiro que conseguiu fazer passar consigo quando ingressou no "segredo", tarefa nada fácil porque os que entravam eram despidos em pelota e as roupas e objectos pessoais pesquisados com minúcia.
Para descer das muralhas até ao mar era necessário uma corda. As três mantas que nos distribuíam, rasgadas em tiras, podiam servir de corda. Lembra-me de uma pequena dúvida que se levantou na discussão deste pormenor: do alto das muralhas até ao mar seriam cerca de 16 metros medidos o que obrigava a uma corda resistente.
O outro risco era poder ser visto pelo guarda da porta em frente, ao sair pelo postigo. Também me recordo que foi lembrada a conveniência de aproveitar, se possível, o turno do guarda Samuel, um velhote inofensivo que às vezes até se metia nos copos.
Tudo foi previsto, inclusive o plano das marés de modo a fazer coincidir a fuga com uma baixa-mar...
Estávamos em tempo de repressão e não foi difícil Dias Lourenço apanhar inesperadamente alguns dias de castigo no "segredo". Não lhe foi imediatamente possível levar à prática a saída e ao fim de dez dias regressou à caserna coletiva.
Ao chegar disse-nos que o postigo estava praticamente cortado. Pressionando a faca com a mão conseguira fazer penetrar o bico até ao exterior. O postigo ficara preso apenas em poucos locais. Os cortes finais seriam dados na noite da fuga e colocaria o postigo no mesmo lugar para que o vigia, vendo o buraco na porta, não desse o alarme. Só na primeira contagem às cinco da manha a fuga seria descoberta.
Tudo em ordem, só faltava fazer os restantes preparativos...

Naquele dia nenhum de nós pensava que a intervenção do guarda Pôpa viesse apressar e colaborar nos planos da fuga... As circunstâncias contribuíram para muita gente pensar (mesmo os carcereiros) que aquela ida para o "segredo" foi provocada por nós ou pelo Dias Lourenço. Mas a verdade não é essa. De fato esperava-se o momento oportuno. E o momento oportuno foi o guarda Pôpa quem o precipitou.
O Dias Lourenço escrevia nesse dia urna mensagem para o Partido (era ele quem nessa altura tinha essa tarefa). Estava sentado na cama a um canto escondido da sala. O guarda Pôpa estava de serviço à nossa caserna e passava de um lado para outro, em frente das janelas, como um cão perdigueiro â procura da caça. Viu o Antonio recolhido no canto a escrever, desconfiou e decidiu atacar. Abriu repentinamente a porta e entrou na caserna. O Dias Lourenço dobrou negligentemente o papel e meteu-o na sua mala. Daí a pouco o Pôpa foi à mala, abriu a tampa, tirou o papel e ia desdobrá-lo para ler. O António, de surpresa, tirou-lho das mãos e meteu-o na boca. Envolveram-se em luta. Enquanto engolia o papel foi levado aos empurrões para fora da sala.
Lembra-me que naquela confusão o Dias Lourenço ainda teve tempo para me lançar um olhar significativo que eu interpretei como indicação de que ia aproveitar a oportunidade.

O tempo que se seguiu à sua ida para o "segredo" foi para todos nós tempo de preocupação e grande ansiedade. Esperávamos a todo o momento, de dia e de noite, uma qualquer indicação do que se teria passado. Teria conseguido sair pelo postigo? Como teria iludido a vigilância do guarda? Como teria conseguido a descida da nitiralha para o mar?
Era todo um mundo de interrogações que nos preocupavam. Sempre que um guarda se aproximava ou abria a porta da sala esperávamos poder observar qualquer indício que fosse uma resposta à nossa ansiedade.

O tempo de espera não foi muito.
Numa manhã seguinte dois guardas entraram na caserna e dirigiram-se para a minha cama. Pressenti imediatamente que tudo se tinha consumado — para o bem ou para o mal.
— Onde estão as coisas do senhor Dias Lourenço? — perguntaram, sem se dirigir particularmente a ninguém.
Todos os guardas sabiam onde ficava a cama do Dias Lourenço, por isso se encaminharam para o nosso canto. Eu e o Dias Lourenço sempre tivemos as nossas camas ao lado uma da outra, e as coisas mais importantes do Dias Lourenço já eu as tinha misturado com as minhas.
Os guardas pegaram em tudo que lhes foi indicado e foram levando. Insistimos para nos explicarem porquê. Não nos deram resposta. Mais tarde conseguimos saber que tinha havido fuga, mas não sabíamos se ela se tinha ou não consumado.
A nossa ansiedade aumentou quando, um ou dois dias depois, os carcereiros fizeram correr a notícia que o Dias Lourenço devia ter-se afogado porque algumas das suas roupas tinham sido recolhidas no mar.
Ficámos assim a saber que a fuga tinha sido um facto; que o Dias Lourenço não tinha sido preso à saída do "segredo"; e que tinha conseguido chegar ao mar. O aparecimento das roupas não nos preocupou muito: tínhamos uma explicação para isso. A nossa principal preocupação era saber se tinha conseguido chegar ao seu destino...

Joaquim Campino


Mais tarde soube-se que naquela noite, em que Dias Lourenço decidiu dar início à fase final e mais difícil da fuga, os dados estavam lançados para o certo ou para o torto.
Com as mantas fez a corda para descer para o mar e com a faca procedeu ao corte da parte da madeira que ainda sustentava o quadrado que abrira na porta a medida do seu corpo. Com todo o cuidado retirou o quadrado da madeira voltando a colocá-lo para escapar à observação da próxima ronda.


Ao descer as rochas, observou que o mar estava mais agitado do que havia previsto, com grande rebentação e ondas de respeito. Para complicar as coisas, a corda havia ficado mais curta do que a distancia a descer e por tudo isto entrou na água de forma descontrolada, tendo-se ferido e perdido logo, levada pelas ondas, a roupa que que tinha presa à cabeça.

Nadou durante bastante tempo tendo acabado por ir parar não à pequena praia que fica próximo da entrada da fortaleza, como pretendia, mas sim a uma zona bastante afastada, nas proximidades do local onde então funcionava a lota do peixe e onde havia a essa hora bastante movimento de pescadores e negociantes de peixe que o transportavam em camionetas de venda.

Foi aos tripulantes duma dessas camionetas que Dias Lourenço se dirigiu, pedindo boleia quando estes se aprontavam para partir com o peixe que haviam comprado.
Pediu boleia para o Bombarral depois de informado que era para esta terra que eles se dirigiam. Perante o seu aspeto, com barba de 15 dias e encharcado até aos ossos a resposta foi uma recusa terminante com o argumento de que excedia a tripulação de sete homens e que teriam de passar pelo controlo da polícia de trânsito à saída de Peniche.
Face a tal situação Dias Lourenço resolveu jogar tudo por tudo. Disse quem era, um preso político que acabava de se evadir da fortaleza e que se não lhe dessem boleia acabaria por voltar a ser preso. Perante tal dilema, revelando um grande sentimento antifascista a tripulação da camioneta, após uma rápida conferência entre eles, acederam ao seu pedido transportando-o, escondido entre eles, até ao Bombarral onde encontrou apoio numa casa de camaradas que já conhecia.

 Jaime Serra

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