fuga #2 1953

Alcançar a liberdade e voltar à luta era uma das maiores aspirações dos presos da caserna 5, onde me encontrava. A recordação de que fora dali que se evadiram os camaradas Jaime Serra e Francisco Miguel exercia sobre todos nós uma contagiante confiança de que também nós seríamos capazes de encontrar uma saída para a liberdade. Não necessariamente a mesma que os camaradas encontraram. Estava ainda muito fresco na memória dos carcereiros o processo utilizado — grades serradas, subir para o telhado e dali descer as muralhas para as rochas até chegar ao cais.


Assistíamos à rotina de todos os dias — os guardas nas rondas batiam com a chave nas grades da janela. Pelo som mais ou menos metálico podiam aperceber-se se alguma delas estava serrada ou começada a serrar.
Sabíamos que naquela caserna já em tempos se havia tentado a fuga furando a parede para o exterior. Fatos pendurados em cabides ao longo das paredes escondiam o buraco e as pedras e a caliça retiradas do buraco eram disfarçadas em embrulhos e colocadas nas prateleiras. A tentativa fora descoberta e agora os guardas sempre que entravam na caserna percorriam com o olhar as paredes e não permitiam um ou outro papel a cobri-las.
—Só há um caminho para sair daqui! — disse alguém certo dia.
—Qual?...
—O chão!...
A princípio a ideia não foi levada a sério. O chão era cimentado. Como era possível abrir caminho através do cimento?... E não apenas o cimento: havia também todas as possibilidades de uma vez furado o cimento se encontrar rocha. Onde encontrar os instrumentos para abrir caminho através da rocha?! Como dissimular o buraco durante as rusgas dos guardas? Como fazer desaparecer a terra ou as pedras que iríamos tirar do buraco?...
Cada um ficou a ruminar em todas estas dificuldades e aos poucos, à medida que os dias e as semanas iam passando, íamo-nos familiarizando com o projecto e cada um ia encontrando soluções possíveis para as dificuldades.
A capa do cimento podia não ser muito grossa... Mesmo que a caserna assentasse sobre rocha esta não é lisa e podia até haver urna galeria que nos levasse ao exterior, etc., etc.
—O mais difícil seria furar a muralha! — dizia um.
— As paredes da muralha não são feitas em cimento! — dizia o Lobão Vital, com a sua autoridade de arquiteto. Naquele tempo não havia cimento e as pedras eram presas com cal. É fácil desprender, pedra a pedra.
Podemos fazer entrar alguns escopros entalados nas tábuas de unia mala — sugeriu outro.
—O buraco pode ser feito debaixo de uma cama para não ser visto pelo guarda nas rondas!
—Não é boa solução — discordava alguém. — O mais seguro é fazer uma tampa de cimento!
— E o cimento? Só se pedíssemos ao Afonso (guarda de confiança)! — Não é arriscado?
Era um mundo de interrogações para o que foi necessário encontrar resposta.

A verdade é que passadas algumas semanas começámos a abrir um buraco debaixo da cama do Gabriel.
Foi montada vigilância na janela para suspender o trabalho logo que o guarda se aproximasse. Havia escopros e martelos. Foi marcado no chão um quadrado de pouco mais de 50 centímetros e começámos a abrir um poço. Quando a placa estava quase cortada foi feita uma tampa com o cimento que o Afonso nos trouxe da vila. A ferragem de uma cama serviu de estrutura metálica. Sempre que o trabalho era interrompido pela chegada da ronda a tampa era colocada a fechar o buraco. As fendas eram disfarçadas com miolo de pão amassado com pó de cimento.
Quando furámos o cimento alimentámos a esperança de avançar depressa porque apareceu terra. Mas a um metro de profundidade a rocha apareceu. Apesar disso ninguém falou em desistir.
Dia após dia íamos partindo pedra e retirando terra. Aos poucos era escoada no latão do lixo que todos os dias despejávamos ao mar, de cima das muralhas.


Um dia aconteceu o que ninguém tinha previsto.
Estávamos na hora da limpeza. Dois camaradas foram despejar o lixo acompanhados do guarda. De cima da muralha despejaram o latão corno era costume. Por cima deles, debruçado numa das ameias, a sentinela da Guarda Republicana observava e viu cair pedras à mistura com os papéis e outro lixo. O barulho de alguns pedregulhos ao cair na água chamou a sua atenção. Lá de cima gritou ao guarda:
Estão a despejar pedras!... Está a ouvir, senhor guarda?!
O guarda fingiu não ouvir mas os nossos camaradas vieram, alarmados, dar a notícia.
Precisávamos tomar medidas imediatas. O guarda foi¬se embora mas passado pouco tempo vimos chegar vários guardas que passaram uma revista à caserna batendo nas paredes.
Quando saíram tomámos uma iniciativa arriscada. Pedimos através do Gabriel, nosso chefe de caserna, que nos permitissem caiar as paredes.
Há muito que vínhamos pedindo para nos caiarem a caserna. Respondiam que a caiássemos nós. Os carcereiros ficaram agora surpreendidos e aceitaram imediatamente. Forneceram a cal e os pincéis e mandaram-nos pôr imediatamente as camas na rua.
Tínhamos calculado isso mesmo. À medida que íamos pondo as camas cá fora íamos também vasculhando o tecto com grandes vassouras. O pó branco que se desprendia das paredes ia caindo no chão cobrindo-o com unia camada branca uniforme. A mancha quadrada do cimento novo ficou assim disfarçada. Os guardas inspecionaram todos os cantos da caserna, acompanhados do chefe Vítor Ramos e do adjunto Bastos mas nada encontraram de suspeito. Ao fim do dia mandaram pôr as camas para dentro.

Alguns dias depois mandaram-nos pôr de novo as camas na rua e deram ordem para lavarmos a caserna. Enquanto colocávamos as camas na rua carregávamos os baldes e os esfregões para dentro e começámos a baldear.
Com toda a naturalidade um de nós encarregou-se de "defender" o quadrado, mantendo sempre em cima da mancha um balde e o esfregão. Mais uma vez houve revista com vários guardas e os seus chefes. Depois de darem por terminada a revista, o Afonso, que tinha ficado de serviço, entrou na caserna e perguntou a rir:
— Como é que fizeram o buraco que ninguém o vê?
Tinha os pés precisamente em cima dele.
—E quem é que te disse que há buraco? — retorqui-lhe eu.
—Então para que foi o cimento?
Como não lhe respondemos saiu a rir e não insistiu.
Passaram-se mais alguns dias e veio a ordem para mudarmos para a caserna 4. O buraco lá ficou tapado. A tampa ficou apoiada sobre uma armação de madeira.
Dali em diante a caserna 5 não recebeu mais nenhum preso. Foi ali instalado o refeitório da GNR.

A interrupção forçada da tentativa de fuga na sala 5 em vez de nos desanimar teve o efeito de despertar em todos nós uma ânsia incontida de alcançar a liberdade pelas nossas próprias mãos.
Ao entrarmos na caserna 4 íamos ainda sob a influência do plano que arquitetámos: fazer um túnel subterrâneo que nos levasse às muralhas. Reparámos, logo que entrámos, que o chão não era de cimento, mas em soalho. Era uma circunstância favorável. Na primeira oportunidade despregámos uma tábua e vimos com satisfação que por debaixo era terra solta sem vestígios de rocha.
Passados alguns dias um grupo restrito começou a estudar o plano. A caserna tinha bastantes pessoas e nem todos estariam interessados na fuga.
 Estariam, no entanto, todos dispostos a arriscar-se a ser coniventes? Não era possível manter em total segredo os preparativos de urna fuga numa caserna com tanta geme. Sobretudo uma fuga que exigia um trabalho coletivo.
A primeira tarefa foi, portanto, preparar as pessoas e ganhá-las para isso.
Fizemos uma discussão pormenorizada com todos os presos da caserna e todos estiveram de acordo em se iniciar os preparativos de fuga. Foi aceite voluntariamente o seguinte compromisso: ninguém falaria no assunto à família nas visitas. Para maior segurança alguém lembrou, e foi acordado, que a própria correspondência pessoal devia ser lida por um grupo escolhido para evitar qualquer referência, mesmo involuntária, que levasse os carcereiros (que censuravam as cartas) a aperceberem-se de que algo anormal se podia estar a passar. Um simples entusiasmo descontrolado podia ser perigoso. Que enquanto durassem os preparativos da fuga ninguém iria sozinho tratar qualquer assunto ao gabinete do chefe dos guardas ou ao diretor. Que no caso de fracasso todos se comprometiam a não fazer declarações fosse contra quem fosse, quer aos carcereiros, quer à PIDE, ou se negariam a falar ou, como limite, declaravam desconhecer quaisquer preparativos de fuga pessoal ou coletiva. A ligação com o exterior sobre este assunto seria apenas da responsabilidade do organismo que passaria a dirigir os preparativos da fuga.
Quando esta fase foi dada por concluída demos início ao trabalho.
Éramos dez os que estávamos preparados para fugir. A maioria era funcionários politicos do PCP, mas havia também não funcionários, entre os quais alguns camaradas chegados do Tarrafal, como o Fernando Vicente e o João Faria Borda.

 Naquele tempo a caserna 4 não tinha guarda permanente em frente das janelas. A vigilância era feita de vez em quando e havia, além disso, as rondas regulares e as formaturas de manhã e à noite, antes do silêncio. Estudadas todas as condições concluiu-se que a noite era a melhor altura de trabalhar na fuga. Mas para isso era indispensável montar um serviço de vigilância ao exterior a partir da janela, para dar o alarme, e de forma a que quando o guarda acendesse a luz e abrisse a porta tudo e todos estivessem em ordem e dentro das suas camas para serem contados.
Fizeram-se testes e concluiu-se que o tempo mínimo gasto pelo guarda, desde ser visto ate chegar à caserna, abrir a luz e a porta era de 23 segundos!... Isto em relação ao guarda mais rápido, o Serrado. Era este o tempo que tinha de servir de base para todos os cálculos.
Entre os camaradas que se dispunham a participar nos preparativos da fuga foram criados vários grupos de trabalho: um grupo que se encarregaria de fazer a vigilância do exterior. Outro grupo que trabalharia na perfuração do túnel. Outro ainda que se encarregaria de espalhar a terra saída do túnel por debaixo do sobrado. Finalmente, um grupo coordenador que tinha a responsabilidade de se manter junto da tampa aberta e daí dirigir todas as operações, desde a mudança dos turnos até ao receber o alarme, dar ordem de saída do túnel e fechar a tampa.

Todos fizemos um período de treino e adaptação às nossas tarefas, a começar pelos vigilantes do exterior que tiveram de estudar o local exato onde se deviam colocar na janela, de forma a encobrirem-se dentro da sombra da ombreira e não se deixarem ver, nem pelo guarda, quando assumisse à esquina, nem pelo GNR que fazia a vigilância nas ameias das muralhas da Fortaleza, mesmo por cima da nossa caserna
Uma corda seria estendida por debaixo das camas ligando o vigilante da janela aos camaradas que estavam junto da tampa. Ao avistar o guarda, o vigilante daria um esticão, sinal que era recebido na boca do túnel por alguém que mantinha permanentemente a corda esticada na mão. Recebido o alarme o camarada transmitia o alarme imediatamente com outro puxão noutra corda que estava presa a um pé do "mineiro". Este saía rápido, soltaria a corda do pé (presa com uma liga elástica) e metia-se na cama. Os camaradas de serviço junto da tampa teriam de ter a corda recolhida, a tampa fechada, e tudo em boa ordem nos 23 segundos.
Era assim que tudo funcionaria dali em diante.

A tampa foi finalmente aberta no sobrado entre as nossas duas camas — a minha e a do Dias Lourenço, que foi o grande dinamizador deste projeto. Ficámos também a fazer parte do grupo coordenador da superfície. O trabalho mais difícil, e que requeria além de boas condições físicas, rapidez e muita coragem, era o de «mineiro». Foram seleccionados para essa tarefa, entre outros, o Severiano Falcão, o José Magro, o José Maria do Rosário, o Chico "Caniço" e o Borda. Outros camaradas colaborariam nos vários trabalhos de vigilância e arrumação de terras, como o Agostinho Saboga e o Alcino de Sousa.

Calculou-se que a distância entre o local onde ia começar o túnel e a muralha seria cerca de 10 metros. Isto iria trazer acrescidas dificuldades de realização que foi necessário ir, aos poucos, estudando e encontrando solução. Entre os presos da caserna havia o camarada José Alexandre, mineiro das Minas de S. Domingos. Foi ele que nos aconselhou a abrir o túnel com uma inclinação ascendente. Isso facilitava a remoção das terras e permitia uma mais rápida saída do túnel nos momentos de alarme. Também foi ele que nos ensinou a técnica mais segura para escorar o túnel. As terras eram muito soltas e havia o perigo de desmoronamento. E um desmoronamento seria a morte quase certa do camarada que estivesse lá dentro.
A madeira para as escoras veio das malas de cada um. Iam desaparecendo à medida que o túnel ia avançando. Quando o túnel atingiu 4/5 metros de comprimento começaram os problemas de ventilação para quem trabalhava lá dentro. Dificuldade agravada com a forma de iluminação: a chama da vela queimava muito oxigénio e agravava o problema da ventilação.
O Dias Lourenço propôs-se fazer um ventilador igual ao das pequenas forjas de serralheiro. Não havia chapa mas ele construiu-o de cartão forte. Quando o pôs a funcionar o cartão não aguentou. Mas este não foi o único fracasso. Para resolver o problema da luz também alguém sugeriu a montagem de iluminação eléctrica. Encontrámos forma de fizer entrar o fio e a lâmpada. Os mais entendidos em eletricidade encarregaram-se de fazer a instalação.
Na noite em que experimentámos a ligação à instalação da caserna como que suspendemos a respiração a aguardar o resultado. Foi um fracasso total. Um curto-circuito pôs toda a fortaleza às escuras e houve alarme geral.

Na visita que se seguiu os carcereiros não encontraram nada suspeito na nossa caserna. Mas, como medida de segurança, foi decidido suspender os trabalhos durante algum tempo, até porque também era necessário encontrar solução para os problemas de ventilação que tínhamos pela frente.
Tinham já passado os dias de incerteza. A vida prisional tinha voltado à normalidade, agora que tudo fazíamos para que nada viesse a perturbar o nosso plano de fuga. Foi um tempo de espera e de reflexão depois do incidente elétrico que quase deitara tudo a perder. Estávamos agora novamente em condições de retomar o trabalho, mas primeiro que tudo era preciso resolver o problema da ventilação sem a qual era difícil prolongar o túnel.
Foi o Agostinho Saboga, da Marinha Grande, quem nos deu a chave da solução propondo a construção de um fole idêntico aos usados pelos vidreiros. Para isso precisávamos de cabedal, ou pelo menos de uma porção de carneira fina. Ele próprio fazia o fole, mas não queria arriscar-se com outro material que não resultaria. Tínhamos presente o falhanço do ventilador do Dias Lourenço exatamente por falta de material capaz.
Foi então que surge a decisão de se passar a fazer de encadernador. A minha companheira e a companheira do Gabriel, a Encarnação, eram as únicas entre as visitas que sabiam dos preparativos da fuga. A minha companheira era quem cá fora se incumbia de nos resolver as dificuldades. As ligações da organização prisional com o Partido faziam-se por seu intermédio. Com a nossa ajuda nas visitas, com a ajuda dos camaradas cá fora e com muita imaginação da sua parte as coisas iam entrando e saindo. Para algum assunto mais trabalhoso a Encarnação participava e nunca virou a cara.
Pedi autorização para receber cartão, papel, fio e carneira para encadernar uns livros para o meu filho. Foram de Salgari os primeiros livros que lhe encadernei. Depois encadernei A Selva e fiz uma pasta de secretária para oferecer à minha companheira. Os livros profissionais que comprei para aprender o "ofício" também me ensinaram que com vários ácidos se podia desenhar na carneira. Que o óxido de zinco faz cinzento, que o cloro faz castanho, etc., etc.. Pedi para me facultarem a entrada de vários desses produtos e expliquei para quê.
Os carcereiros iam-me vendo trabalhar e iam cedendo, talvez na secreta esperança de que "me deixasse de políticas" corno eles aconselhavam a tantos. Entretanto a carneira ia sobrando e o Saboga ia fazendo o fole. Quando deu o trabalho por terminado fizemos a experiência e tivemos outra desilusão; o ar insuflado pelo fole não chegava ao fundo do túnel. Sabíamos que havia falta de oxigénio porque a chama que lá acendíamos se apagava passado pouco tempo. Os camaradas corriam perigo e naquelas condições não era possível continuar. Era indispensável fazer entrar um tubo que, aplicado ao fole, levasse o ar até ao fundo do túnel.
Foi talvez esta a tarefa mais difícil que foi posta à minha companheira para ela resolver. Foi à Pollux, comprou dez metros de tubo de plástico maleável e fez o mesmo que já tinha feito para introduzir o fio eléctrico — enrolou-o muito bem no fundo de um tacho e encheu¬o de arroz doce. Depois decorou-o a preceito como se faz nos dias festivos. Só que uns metros de fio eléctrico fazem pouco volume enquanto o tubo de plástico fazia um volume maior. Por isso na visita as nossas famílias apareceram com um tacho tão grande que dava nas vistas...
— Hoje é dia de festa lá em casa. Trazemos arroz doce para todos!... Já pedimos autorização!...
Trazia à mistura também mais algumas guloseimas, mas era apenas para servir de cenário. Foi um risco calculado que resultou bem.
A visita acabou. Viemos para a caserna e foram minutos de martírio até sermos chamados para ir buscar as coisas. Por nós e por elas. Lá fomos e lá veio o tacho com o tubo dentro.
E foi assim que retomámos os trabalhos de perfuração. A solução do fole resultou inteiramente e agora a chama não se apagava.
Entusiasmado com o êxito do tubo, um dia, o Dias Lourenço, numa visita, disse em segredo à minha companheira:
— E agora tens de cá meter um candeeiro!...
Não foi necessário. Bastou trazer um frasco com doce, cuja configuração da boca permitiu adaptá-lo a candeeiro. Fez-se um furo na tampa, meteu-se-lhe uma torcida feita de algodão e o combustível foi o petróleo que havia na caserna, porque naquele tempo ainda era permitido cozinhar e o lume usado eram os antigos fogareiros a petróleo.
O trabalho foi retomado. O túnel atingiu dez metros sem grandes novidades, mas a muralha não aparecia. Cada vez era mais difícil cumprir os 23 segundos nos alarmes.
A saída fazia-se em corrida de coelho, mas recuando porque a largura e altura do túnel não permitia virar o corpo. Para tornar a saída mais rápida alguém lembrou molhar o chão do túnel. A terra era barro e molhado permitia um melhor deslize na descida quando era necessário sair rápido.


Estávamos perto do Natal de 1953 quando se atingiu a muralha. Há mais de três meses que tínhamos iniciado o túnel. Foi um momento de alegria. Agora era preciso a cabeça fria para a parte final. O túnel tinha precisamente 12 metros e na posição em que os camaradas trabalhavam não era possível atacar a muralha. Segundo os camaradas que trabalhavam no túnel era indispensável abrir no fim do túnel uma plataforma onde fosse possível trabalhar sentado e foi o que decidimos fazer. Entretanto o Natal chegou e decidimos suspender os trabalhos e fazer um Natal festivo e calmo, naturalmente cheios de confiança.
Estávamos atarefados a preparar a ceia da véspera, e quando o Faria Borda se esmerava a preparar os seus petiscos o guarda abriu a porta e disse:
— Os senhores Faria Borda, Fernando Vicente e Joaquim Casquinha preparem as suas coisas para saírem em liberdade!
Foi um corrupio de abraços. Ao fim de 18 anos de prisão quase todos cumpridos no campo de concentração do Tarrafal, os nossos camaradas iam finalmente conhecer a liberdade.
Tivemos nesse ano um Natal duplamente festivo: o nosso projeto caminhava de vento em popa e os três camaradas marinheiros, principais personagens do heróico levantamento da marinha de guerra portuguesa contra o fascismo em 1936 tinham saído em liberdade.
 Qualquer dos três camaradas conhecia em pormenor Os nossos planos de fuga e estava a colaborar activamente nos trabalhos. Mas numa rápida apreciação da situação concluímos que a sua saída não alterava em nada Os nossos planos. A confiança nos camaradas era total. Não havia razão para qualquer preocupação.
Os trabalhos iriam continuar logo a seguir aos festejos do Natal e desta vez com a colaboração de um novo camarada que entretanto acabava de chegar à nossa caserna — o camarada Carlos Pinhão, que imediatamente se integrou no grupo de trabalho dos vigilantes.

Estávamos em Janeiro. Era uma noite de luar, aquele nosso conhecido luar de Janeiro que torna as noites luminosas. Uma aragem fresca soprava do lado do mar e quando assim era ouviam-se mais distintamente as vagas contra as muralhas, e a ondulação invadia com mais força as cavernas subterrâneas da Fortaleza, percorrendo-as, fazendo bater as pedras soltas contra o fundo rochoso. Durante os anos que duraram a nossa prisão tínhamo-nos familiarizado com este som marítimo nas noites de maior invernia. Da mesma forma que nos era familiar a ronca do farol do Cabo Carvoeiro avisando a navegação nos dias e nas noites de nevoeiro.
Mas eram estas noites de mar batido as melhores noites que tínhamos para trabalhar dentro do túnel, agora que estávamos na derradeira fase de atravessar a muralha, arrancando-lhe pedra a pedra, até encontrar do lado de lá a liberdade que procurávamos.
No pleno silêncio das noites calmas qualquer ruído suspeito podia alertar a sentinela da GNR que se deslocava por cima da nossa caserna. O seu alerta ouvia-se de vez em quando e repercutira-se depois por todos os outros postos de vigia, por cima das ameias, à volta da Fortaleza.


Naquela noite contávamos com o barulho vindo do mar e com o som das pedras a bater umas contra as outras nos fundos da Fortaleza para abafar os ruídos metálicos das ferramentas que tínhamos começado a usar para arrancar as pedras das muralhas. Por isso se trabalhava com absoluta confiança e longe de pensar que o perigo nos espreitava.

Passava da meia-noite. Pelas nossas contas não tardava que o guarda viesse passar a ronda habitual.
De vigia à janela estava naquele turno o camarada Carlos Pinhão. Junto da tampa estávamos eu, o Dias Lourenço e o Gabriel. Como de costume havia vários camaradas bem acordados.
Não me recordo já de quem estava a trabalhar dentro do túnel. Mas lembro-me ainda bem (como de um mau pesadelo) do momento em que recebi do Carlos um esticão de alarme, seguido de outros pequenos esticões indefinidos. O alarme foi imediatamente transmitido para dentro do túnel. O camarada saiu e foi meter-se na sua cama. A tampa foi fechada como de costume. Passaram-se alguns segundos para além do previsto sem o guarda aparecer. Por fim ouvimos a sentinela gritar lá de cima:
— O que é que estes gajos estão a fazer em pé a estas horas?!...
Concluímos que falava para o guarda. Foi um momento de grande surpresa e de expectativa. A sentinela da GNR tinha avistado o Carlos Pinhão à janela e deu o alarme.
Tomámos rapidamente algumas medidas: quando finalmente o guarda Serrado acendeu a luz e abriu a porta pedimos que chamasse urgentemente o enfermeiro porque tínhamos um camarada bastante doente com urna cólica. Olhou-nos incrédulo mas viu o Guilherme de Carvalho na cama a torcer-se com dores e uns camaradas a acender o lume para aquecer a água e outros com um saco na mão para lhe aplicar sobre a dor.
Acabou, por nossa insistência, por ir chamar o enfermeiro. Entretanto vários camaradas se levantaram e todos esperávamos o enfermeiro "alarmados com o estado de saúde do camarada...".
Veio o enfermeiro e meio desconfiado viu o "doente". Para tornar mais verídica a "doença" o Guilherme tinha suportado sobre os rins um saco tão quente que a pele estava a empolar. Mesmo assim ficámos convencidos de que, quer o enfermeiro, quer o guarda, não tinham "comido" a explicação...
Quando saíram e voltaram a apagar a luz decidimos jogar tudo por tudo; montámos de novo um dispositivo de vigilância e metemos dentro do túnel tudo quanto nos podia denunciar numa busca à caserna: o fole, o tubo, o fio eléctrico que tinha servido para a experiência falhada, o candeeiro, toda a roupa suja usada nas escavações e até o rodo que servia para espalhar a terra por debaixo do sobrado. Depois tapámos com terra a boca do túnel até ao nível da tampa e fechámo-la o melhor possível. Só nos restava esperar pelos acontecimentos que se haviam de seguir.

Entretanto o Carlos Pinhão foi-nos contando o que se tinha passado com ele: viu o guarda aparecer na esquina e deu o alarme. Mas inexplicavelmente o Serrado em vez de vir em direcção à caserna seguiu em frente para o lado do mar. Para não o perder de vista avançou um passo e debruçou-se mais na janela por detrás dos vidros. Devia ter sido nesse movimento que ele ultrapassou a zona escura de segurança e foi visto de cima pela sentinela. Ficou sempre por entender o comportamento do guarda Serrado, mas é muito possível que aquele luminoso luar de Janeiro, com que não contávamos, nos tivesse traído, evadindo a zona escura demarcada e que também o guarda Serrado tivesse avistado a silhueta do Carlos. Pode ter querido enganar o Carlos dando uma volta maior.
No dia seguinte, depois da alvorada, foi servido o café com toda a normalidade. Passado pouco tempo um guarda veio dizer-nos para pormos as camas na rua.
—É para lavarmos a caserna? — perguntámos.
—Depois se verá! — respondeu misteriosamente o guarda.
Pusemos as camas na rua como era habitual para as limpezas, mas logo a seguir chegou o chefe dos guardas. Vítor Ramos, com o ajudante Bastos e mais um grupo de guardas. Esperámos com o coração oprimido o resultado da busca. Alguns de nós disfarçávamos o nosso nervosismo brincando com uma bola, mas os nossos sentidos estavam todos virados para o que se estaria a passar lá dentro.
Daí a pouco o Bastos sai e regressa com um martelo e uma picareta. Olhámos uns para os outros preocupados. Tudo parecia agravar-se...
A busca foi demorada mas em certo momento sentimos que tudo estava perdido: foi quando ouvimos o ruído de tábuas a serem levantadas. A terra que tínhamos tirado do túnel estava espalhada por debaixo do soalho. Em qualquer local onde fosse levantada uma tábua se veria terra solta e com sinais de ter sido mexida. E terra solta e fresca era sinal de buraco em qualquer sítio: era só questão de procurar.
E foi o que aconteceu. Não tardou que ouvíssemos um certo sussurro e urna agitada movimentação. Estava tudo descoberto!...
A partir dali foi apenas necessário acalmar os desânimos e preparar as pessoas para o embate com os carcereiros ou mesmo com a PIDE.
Pela tarde adiante fomos transferidos para a sala 3 — a nossa primeira caserna. Ficámos todos sem visitas e sem correspondência até apuramento de responsabilidades. Meteu inquérito da PIDE. Fomos um a um chamados a depor. "Seriam castigados todos aqueles que não provassem a sua inocência." Como ninguém prestou qualquer declaração contra quem quer que fosse, o castigo foi coletivo — 30 dias de isolamento na caserna.

Joaquim Campino

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